domingo, 7 de fevereiro de 2010

Dialética da idade sem esperança

"Tenho sido um homem velho desde, talvez, os doze anos.
Minhas lembranças, um tanto esgarçadas, retrocedem a tempo mais distante ainda, captando episódios que estavam a denunciar o velho, as barbas do velho, os humores do velho, contidos num triste menino que pouco sorriu, na idade em que os meninos andam a desferir risos de pássaros, sem, às vezes, nenhum motivo. Bem cedo rejeitei o concurso de amassecas, preferindo desembaraçar-me sem arrimos, ostentando enfática e ingênua suficiência, que fazia burlesca a sofrida criança de três anos, a enfiar suas botas, a remover a roupa, a procurar o banho na hora habitual, a partir o pão, a cuidas das suas miúdas cousas, dispondo-as, cada qual, no seu lugar. Não estou louvando; estou deplorando este menino rígido como um punho cerrado, que nunca pôs a voar um papagaio, nem montou o dorso de uma árvore para colher as suas frutas. Seus sentimentos e ideias eram ideias e pensamentos idosos. E foi sempre, sem realmente o desejar, uma peça dura e estranha, um som ríspido, desalojado entre as crianças, de cuja intimidade se omitia, deliberadamente, para estar só. Nasceu daí o amor carnal pela solidão, a boca somítica de palavras, a imperícia quase orgânica de criar e cativar laços amistosos -os gestos sem doçura de um boneco de mola, a acidez, os olhos álgidos, os súbitos e ferrozes arroubos de silêncio."


Haroldo Maranhâo (1927-2004). "Allegro Ma Non Troppo" em A Estranha Xícara (p.69, Editora Saga, 1968)

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