domingo, 17 de abril de 2011

Cubo Mágico


Segure-se.

Com as duas mãos, sem medo, agarre a crina e galope através do tempo.

Névoa. Céu cinzento. Grávido de tempestades.

Entardecer, lusco-fusco cobrindo a mata.

Na curva do S, Eldorado, sonho e perdição.

A fuzilaria não tarda a começar.

Soldados arcabuzeiros, bombardas e canhões.

Sobre o asfalto, sangue. Muito sangue.

Em meio à gritaria horrenda, um rosto se destaca.

Cabelos ao vento, brancos, branquíssimos.

Ele, o principal, dirige os seus na luta desesperada.

Antes que a noite caia, Guaimiaba, chefe guerreiro, será dominado.

O laudo oficial dirá que levou quatro tiros. Todos mortais.

Um atingiu a cabeça, de trás para frente.

Outro estraçalhou sua testa, pelo lado direito.

Por trás - sempre por trás, seus algozes acertaram seu pescoço, vida que se esvai.

E, sem misericórdia, um último tiro penetrou no lado direito do peito que não se entrega.

Era 17 de abril do ano da graça de 1996.

Ventania. Folhas ao vento.

A floresta se move, silenciosa, decidida.

- Quem vem lá?

- Quem vem lá?, gritou o vigia, tomado pelo mais espesso medo.

Começava o ataque derradeiro.

Nação Tupinambá em formação.

Carregam foices e paus.

Carregam bandeiras vermelhas.

Carregam, em seus alforjes esfarrapados, amuletos ancestrais, cânticos e coragem.

O forte do invasor, porém, não será tomado.

Da paliçada, em frente ao grande rio, protegidos, metralham.

Chumbo. Aço que tudo rompe.

Vidas partidas e lançadas, em pedaços.

A terra sentirá, como nunca, o peso das botas assassinas.

Oziel Alves Pereira, 17 anos, pele escura, cabelos longos, desafiantes.

Ele não se entregará. Mesmo diante da derrota iminente, é líder até o final.

Antes que a noite caia, Oziel, chefe da legião de homens livres, será dominado.

A soldadesca vai cercá-lo, em fúria.

Um tiro de arcabuz?

O canhão que cospe fogo e morte?

Uma punhalada pelas costas?

Pouco importa.

A ordem é clara: matar. Acabar com essa cambada.

Era 7 de janeiro do ano da graça de 1619.




Ilustração: Desenho de Edmilson Rodrigues (novembro 2002, Milano). "Marés do Céu" - Desenhos - Curadoria: Gileno Chaves. MABEU - Museu de Arte Brasil - Estados Unidos. Clique sobre a imagem para ampliá-la.

2 comentários:

Anônimo disse...

Querido Aldenor,
Seu texto me deixou com a garganta apertada e os olhos inundados numa mistura de tristeza e alegria. Tristeza pelos tantos que se foram, pela dor posta nessa luta de resistência, alegria pela sempre renovação da certeza de que o sonho por justiça, por uma sociedade mais justa e solidária ainda faz parte da luta no dia-a-dia de tanta gente e está sempre renascendo. Obrigada pelo compartilhar desse escrito sensível que, sem dúvida nenhuma, é um instrumento que nos dá força para seguirmos em frente sempre, na construção de melhores dias para todos em cada lugar que atuamos. Lucília Matos

eloy borges disse...

"Vai ser tão bonito se ouvir a canção, cantada de novo.
No olhar do homem a certeza do irmão.
Reinado do povo."