domingo, 20 de setembro de 2009

Dialética da Belém inundada de cores, olhares e cheiros no Círio

"(...)

Debaixo das mangueiras do Largo do Palácio, espalhavam-se famílias que só vinham mesmo para ver a transladação e o Círio e voltarem logo. Não tinham conhecidos, parentes e aderentes na cidade para uma hospedagem. Esperavam, pediam que a noite chegasse. Então, eram aqueles seus penteados, as saias gomadas, descalças por promessa, pés enormes na calçada, pés de roçado e beira d´água. As moças, saquinhos e lenços cheios de doces na mão e no colo, sentavam nos bancos do Largo, cruas da cidade e silenciosas espeiavam. Ah, mas como espiavam. Senhoras davam o peito aos seus curumins e havia uma, de seio cor de chocolate e teso, pronta, aos olhos de Alfredo, para amamentar as outras crianças ali por perto chorando. A gitinha dela, farta, brincava era com o bico do peito, que a mãe tinha esquecido de recolher. A população romeira se derramava dos barcos, canoas, igarités, curicacas, batelões, traqueteiras, vigilengas, todas as embarcações a remo, vela e algum motor. Habitavam o Largo, corriam a ver a cidade. A Cidade. Alfredo olhava. Via os telhados, as mangueiras cobrindo aquele acampamento, as andorinhas. Errava um cheiro de criancinha verde e doces, de peito de mãe. Subiu um foguete. E pela beira da praia o peixe frito se misturava ao azeite de andiroba, cumaru e ervas. Blocos de gelo nas canoas geleiras atiçavam as sedes e a curiosidade. Descarregavam o peixe. Alfredo reparava nas bocas. Umas comiam, quantas fumando, aquelas gritavam, cantavam, cuspiam. As bocas. Aquele tapuio agarrado a um cabo de proa, corpo liso, lustroso, só de calção, os dentes rasgavam-lhe a boca numa risada que era uma arte, de tão bem rir. (...)".

Dalcídio Jurandir (1909-1979). Belém do Grão-Pará (2004, EDUFPA, p. 455-456)

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