domingo, 3 de maio de 2009

Dialética da eternidade em uma folha de papel

"(...) esses livros determinam meus sentimentos, meu entendimento do mundo, são o mapa de minha alma, cada um representando uma região, um lugar onde estive e onde ainda estou, há entre eles os meus preferidos, ficam separados numa das prateleiras, rabiscados desde a primeira página, onde se encontram palavras manuscritas, lembranças, ideias, pétalas secas, madeixas, preces, são meus livros, mas tenho sempre a sensação de que não me pertencem, sou dona deles mas apenas uma pequena e frágil conexão entre um e outro tempo, vivo trancada numa sala onde livros vivos sorriem, choram, zombam, ensinam, atraiçoam, respiram, livros que passam de papel para papel, às vezes sou tomada de uma tristeza por não saber o que lhes acontecerá depois de minha morte, mas sei que eles, como as pessoas, tem seu destino, alguns meu filho levará, outros, um neto, outros ainda serão vendidos num sebo, com meu nome, bilhetes, segredos, receitas, folhas de outuno, gotas de cafe, que tornarão triste um leitor sensível, os demais deixarei de lembrança para amigos, mas todos existirão mais do que eu, uns existirão eternamente".


Ana Miranda. Noturnos (1999, p.58, Companhia das Letras)

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