quinta-feira, 13 de maio de 2010

Os fios de uma meada sem fim

Ecos da escravidão.
Ecos da resistência.
Nas páginas que o tempo amarelou, as histórias que os protagonistas - todos ou quase todos - jamais tiveram a chance de decifrar.

"...a cafuza amolatada Raimunda, em fevereiro de 1850, "fugiu em companhia de uns desertores do Batalhão Provincial" rumo à região de Turiaçu e Bragança, área de quilombos (O Publicador Paraense, 20/12/1850, p.04);

E lá, nos quilombos, entre muitos dos seus, Raimunda seguiu sua sina. Terá se embrenhado o suficiente no coração da mata para fugir dos ataques sistemáticos que se fechavam, como uma tenaz em brasa, sobre o pescoço da insurgência negra e pobre? Ou seus sonhos acabaram despedaçados em meio a pólvora e o fogo dos capitães do mato?

"...Roza, atapuiada, em janeiro de 1849 fugira, fazendo crer a sua senhora que estava "na ilha das Onças com um cafuz dezertor de bordo de nome Venâncio" (O Doutrinário, 25/07/1849, p.04);

Com as águas da baía lambendo seu pequeno casebre, Roza, rosto de índia, vê, bem ao longe, as torres das igrejas que sua gente levantara do chão, erguendo há tanto tempo cada parede com a liga de suor e sangue, desde que a primeira nau penetrara o rio-mar com o ventre repleto de armas cuspidoras de morte. Seus filhos - ilhéus e pobres, meio-índios, meio-negros, terão feito o caminho de volta ao porto de sua fuga. No Ver-O-Peso - de ontem? De hoje? - lá estão eles espelhados em tantos rostos e amalgamados numa profusão de cheiros que deixa a cidade do Pará em estado de semi-embriaguez permanente.

"...Jozé havia fugido "em companhia de um italiano, que fazia dançar um macaco, dizendo ser livre (O Planeta, 07/03/1850, p.04);

O que fazia, por estes sertões encharcados de chuvas e lanhados pela injustiça, um cidadão italiano de tão estranhas habilidades. Ele fazia dançar um macaco, diz o relato da época sem oferecer maiores detalhes. Seria um mágico? Um saltimbanco? Um artista que a velha Europa arremessara, grávida de tanto sangue e de tantas revoluções, por sobre o Atlântico para aqui, na província mais massacrada de todo o Império, executar seu ofício de fabricante do riso e da arte de ludibriar a dor?
Jozé - com quantos anos contaria? - dizia-se livre. E isso soava como uma afronta, uma cusparada na face de senhores de terras, de gados e de gentes.
Jozé, nome tão comum - carpinteiro, agricultor, operário, agitador, sambista, professor, mestre de capoeira, escritor...
Em seu olhar, por brevíssimos segundos, enquanto o igarité balançava, manso e sereno, na penetração de águas que se perdiam e se achavam por entre a floresta, pode-se perceber a marca indelével dos homens que anunciam, sem medo e com a perícia de artífices, a chegada do amanhecer.

Colagem a partir de trechos (em destaque) de "Ousados e insubordinados: protesto e fugas de escravos na província do Grão-Pará - 1840/1860", p. 101-102, do historiador paraense José Maia Bezerra Neto.

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