Se há mortos que não morrem jamais, um desses responde pelo nome de Zambem, Nzambi, Zumbi, "Deus da guerra" para alguns, "Senhor dos mortos" para outros tantos. Sua sombra passeia pela história, provocando ora pavor, ora esperança a depender de que lado escolhido pelo observador.
Lá está ele, com sua lança e seus adereços inbangalas, olhando ao longe a aproximação das primeiras naus do invasor. Angola, terra de seus ancestrais seria sangrada de morte quando o primeiro "civilizado" alcançasse a praia e deflagrasse a guerra sem fim.
Morto em combate, escravizado, violado, ele renasceu entre os cativos. Singrou o Atlântico no ventre de um navio-tumbeiro. Na placenta do horror indescritível temperou seu caráter.
Em Porto Calvo, entre a sacristia e a senzala, descobriu que não havia (re)nascido para sucumbir diante da palmatória da fé alheia ou do açoite inclemente que o reduzia a instrumentum vocale; Aos 14 emigrou para Palmares, na fértil serra da Barriga, e de lá somente sairia morto ou vivo para sempre.
Guerreiro tenaz não parou mais de lutar. Nem mesmo o seu tio, Ganga Zumba, rei de todos os quilombos do vasto território de Palmares, foi capaz de domesticá-lo.
25 de novembro de 1695, a traição encontra Zumbi isolado, fugitivo, mas ainda assim cavando trincheiras ao lado de uma meia dúzia de combatentes. É com eles que trava a última batalha. Nas palavras de Caetano de Melo e Castro, fidalgo português que governava Pernambuco à época, ele "pelejou valorosa e desesperadamente, matando um homem, ferindo alguns e, não querendo render-se, nem os companheiros, foi preciso matá-los, e só a um se apanhou vivo; enviou-se-me a cabeça de Zumbi, que determinei se pusesse em um pau, no lugar mais público desta praça (da cidade do Recife), a satisfazer os ofendidos e justamente queixosos e atemorizar os negros, que supersticiosamente julgavam este imortal...".
Acabava-se Palmares, estava morto Zumbi. Será?
Há quem jure que ele foi visto, encarnado em marujo, entre os que tomaram o Minas Gerais e fizeram daquela nave de guerra a plataforma para por fim aos açoites que a Marinha impunha aos seus homens, todos pobres, quase todos negros. Corria o ano de 1910 e um, dois, muitos Zumbi marcharam ao lado de João Cândido, até que perecessem sob as balas da reação ou de fome e de sede nos cárceres de um Estado que renegou a anistia concedida tão pouco tempo antes.
Estava ele também, feito síntese primorosa dos que se unem para combater a escravidão de ontem e a de hoje, no fusca crivado de balas, à altura do número 806 da alameda Casa Branca, no aristocrático Jardins, São Paulo, capital. 04 de novembro de 1969, morria Marighella, nascia, no mesmo instante o eterno Zumbi.
Lá vai Zumbi-Oswaldão, corpo decapitado, preso à pá de um helicóptero verde-oliva. O sobrevôo é rasante, feito para provocar horror nos povoados do Araguaia, naqueles dias sombrios de 1974, o cerco se fechando como uma sucuri que vai esmagar, um a um, os ossos de sua presa.
Morrer, nascer, lutar, moto-contínuo. Afinal, não foi o olhar de Zumbi, misturado a outros tantos, que foi divisado, em meio à quase-escuridão do amanhecer, rompendo as cercas da morte de mais um latifúndio na Amazônia das Casas-Grandes e Senzalas?
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