domingo, 4 de janeiro de 2009

Dialética da Amazônia (pelo olhar do estrangeiro)

"A viagem terminou num lugar que seria exagero chamar de cidade. Por convenção ou comodidade, seus habitantes teimavam em situá-lo no Brasil; ali, nos confins da Amazônia, três ou quatro países ainda insistem em nomear fronteira um horizonte infinito de árvores; naquele lugar nebuloso e desconhecido para quase todos os brasileiros, um tio meu, Hanna, combateu pelo Brasão da República Brasileira; alcançou a patente de coronel das Forças Armadas, embora no Monte Líbano se dedicasse à criação de carneiros e ao comércio de frutas nas cidades litorâneas do sul; nunca soubemos o porquê de sua vinda ao Brasil, mas quando líamos as suas cartas, que demoravam meses para chegar às nossas mãos, ficávamos estarrecidos e maravilhados. Relatavam epidemias devastadoras, crueldades executadas com requinte por homens que veneravam a lua, inúmeras batalhas tingidas com as cores do crepúsculo, homens que degustavam a carne de seus semelhantes como se saboreassem rabo de carneiro, palácios com jardins esplêndidos, dotados de paredes inclinadas e rasgadas por janelas ogivais que apontavam para o poente, onde repousa a lua de ramadã. Relatavam também os perigos que haviam enfrentado: rios de superfície tão vasta que pareciam um espelho infinito; a pele furta-cor de um certo réptil que o despertou com o seu brilho intenso quando cerrava as pálpebras na hora sagrada da sesta; e a ação de um veneno que os nativos não usavam para fins belicosos, mas que ao penetrar na pele de alguém, fazia-lhe adormecer, originando pesadelos terríveis, que eram a som dos momentos mais infelizes da vida de um homem".

Milton Hatoum. Relato de um certo oriente (Companhia das Letras, 1989, p. 71-72)

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