segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Dialética no olhar atento de Eneida

"DELÍRIO NÚMERO UM

A primeira vez que senti o que depois chamei apelo dos pés, foi num café, se bem me lembro da rua Álvaro Alvim, onde, sentada diante de uma mesa, conversava com um amigo. A porta, cortada embaixo, era bastante alta para não mostrar cabeças; uma porta movediça e irrequieta, comum a vários restaurantes e cafés, egoísta porta consentindo apenas a exibição de pequeninos trechos das pernas e pés em trânsito.
(...)
Meu amigo continuava falando, gesticulando, sorvendo pequenos goles. Palavras iam, frases surgiam enquanto indiferente a tudo, eu continuava apenas presa àqueles sapatos, àqueles pés.
Há tragédias nestes, cheios de lama. A camisa de seu dono deve estar suja, o colarinho puído, as meias rotas. De onde vem assim, se não está chovendo? Por onde andou para apresentar pés marcados pelas estradas sem calçamento? Estará chovendo em algum subúrbio distante? Não os sujou na cidade, pois a dias não chove. De onde vem esse homem? Quanto ganhará ele? Terá uma grande família, mudas e mortas estarão as bocas de seu fogão? Pequeno funcionário ou biscateiro? Que faz nesta rua a esta hora?".

Eneida de Moraes (1904-1971), escritora, jornalista, esta paraense de Belém dedicou sua vida à cultura e ao compromisso com as causas libertárias. O trecho acima está na primeira edição (1957, p.62-65)) de seu mais famoso livro de crônicas, "Aruanda", publicado pela Livraria José Olympio Editora.

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