domingo, 15 de novembro de 2009

Mestres de luminosas manhãs

A publicação, pela Universidade do Estado do Pará (UEPA), de Primeira Manhã, obra magistral de Dalcídio Jurandir em pleno ano do centenário do nascimento do grande escritor paraense, merece registro e elogio. É uma contribuição efetiva à cultura nacional, sem dúvida. Mas ainda é pouco diante da grandeza da obra deste marajoara ímpar, homem que soube viver na coerência de ser ele e as circunstâncias de seu tempo. Por décadas a fio rememorizou o Marajó e suas gentes, com a sensibilidade que só se encontra nos melhores poetas e naqueles que dedicam a existência à busca de uma terra sem amos.
E é justamente deste livro, cuja primeira edição data do distante 1968, que Benedicto Monteiro, outro grande escritor paroara morto no ano passado, realizou uma de suas mais interessantes incursões pelas sendas da poesia. Em O Cancioneiro de Dalcídio (Falângola/PLG Comunicação, 1985, 135 páginas, esgotado), a prosa dalcidiana se transforma em peças de poesia, lapidadas por um ourives igualmente genial.
Enquanto esta manhã de domingo já vai alta, uma breve degustação para atiçar o gosto pela leitura do que há de melhor na literatura brasileira produzida nesta terra grávida de tantas belezas:

De Dalcídio Jurandir (Primeira Manhã, p. 17):

(...)
professor, dissolvidos no rosto de um peixe azulado de gelo e barba, a lição escorria. Os óculos faiscavam, refletindo velhas águas do chalé, o rio no sol das duas da tarde; antigos olhos de menino pela beira da dágua: a lição distância a se. Terá visto uma vez o reflexo de um raio no rio, a água clareando pelo fundo, a canarana, um peixe-boi boiou encadeado. Que estou fazendo aqui, quem marcou este encontro entre estas criaturas e aquele gelado peixe de óculos? Que entendimento a de sair deste ouvir de muitos e daquele falar de um só. Que está fazendo aqui, lhe disse a mãe ao apanhá-lo conversando com a Eunice, em Muaná. De novo o vago gesto de tédio e impaciência do peixe em seu aquário, riscando o quadro negro. Alfredo tentava compreender. Palavras brancas cobriam-no de cinza e perplexidade. Cinza nas cabeças, ombros, perfis, silêncios, nucas, o lápis da branquinha desenha a própria distração, tocou a corneta dos bombeiros. Sobre este raio que lhe queima o peito, jorre então a mangueira dágua. Esponja no quadro, giz na ponta do dedo como a própria unha, o...

De Benedicto Monteiro (O Cancioneiro de Dalcídio, p.59):

A aula na escola da várzea

Os óculos faiscavam
refletindo velhas águas
o sol no rio
e os olhos de menino.

Terá o professor
visto uma vez
o reflexo de um raio
a água lariando
e o peixe-boi boiando
encandeado?

Quem marcou este encontro
entre crianças
e este peixe azul
de gelo e óculos
riscando neste quadro?

Que entendimento
há de sair deste ouvir
de muitos
e daquele falar e falar
de um só?

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