A imprensa está atônita. Não compreende o que sustenta o sistema político cubano, quase duas décadas depois da derrocada do “socialismo real”. Na época, em 1991, a mídia norte-americana chegou a fazer contagem regressiva para que a população de Havana fosse às ruas derrubar muros e estátuas que no caso cubano eram mera ficção, ressonâncias de uma Guerra Fria que parece não ter fim.
Agora, diante da sucessão sem traumas que ocorre na ilha, despeja-se uma infinidade de asneiras e de adivinhações sobre o futuro imediato do único país latino-americano que teve forças para resistir, distante apenas 80 milhas, à brutal influência do maior império moderno da Terra. Tudo isso, lembre-se, em meio a um bloqueio econômico desumano, parte fundamental da guerra de baixa intensidade inaugurada desde sempre, mas tornada política de Estado em 1961.
Cuba aparece nas telas da CNN como um filme sem legendas. Seus habitantes falam uma língua exótica, ininteligível para os padrões dominantes. Carece de interpretação, tanto o que se diz, mas também os silêncios dos discursos oficiais. É só Raul Castro, presidente eleito pelos 614 deputados do parlamento cubano, falar em mudanças para que se comece a especular o retorno às práticas capitalistas que antes de 1959 transformavam a ilha caribenha num alegre bordel norte-americano. Ou, quando menos, prever uma fantasiosa tendência da direção cubana adotar, em breve, o modelo chinês – abertura econômica e ditadura política. Palavras soltas ao vento, propaganda ideológica apresentada como notícia objetiva.
Se tivessem um pouco menos de preconceito, esses bem-pagos articulistas poderiam rever com mais atenção a trajetória do irmão mais novo de Fidel. Perceberiam que sua história, forjada nas mesmas trincheiras, não deixa margens a ilusões. Afinal ele é aquilo que se pode denominar de um sobrevivente. Em 1953, durante o ataque ao quartel de Moncada, era um dos 135 guerrilheiros que ousaram desafiar a ditadura de Fulgencio Batista. Após o fracasso do ataque, 90 combatentes foram sumariamente executados. Poucos anos depois, em 1956, desembarcou do Granma em meio à fuzilaria das tropas do governo. Dos 82 expedicionários, apenas um número que varia de 22 a 12 combatentes conseguiram sobreviver, entre eles, como a história foi testemunha, lá estava Raul, ao lado de Fidel e Che Guevara.
Não se fale nem nos enormes riscos que correu durante a campanha guerrilheira de Sierra Maestra, quando foi um dos principais comandantes. Conhecido por sua firmeza no combate, implacável com os adversários, não titubeou, por exemplo, em tomar 49 norte-americanos como reféns, em 1958, como forma de pressionar Washington a cessar, mesmo que momentaneamente, o envio de aviões e bombas de napalm às tropas de Batista, que provocavam enormes perdas às fileiras revolucionárias.
Enfim, um homem de princípios e não um arrivista de ocasião, pronto a trair os ideais da revolução que ajudou a construir.
Deveria ser leitura obrigatória nas redações o monumental livro de um jornalista e escritor norte-americano, Jon Lee Anderson. Che Guevara, uma biografia (Editora Objetiva, 1997, 920 páginas) vai muito além de traçar um perfil do revolucionário argentino. É, ao mesmo tempo, um olhar profundo, crítico e generoso de todo o processo cubano. Quem sabe não teríamos uma redução considerável do número de abobrinhas nos despachos e análises da cobertura internacional.
Nenhum comentário:
Postar um comentário